'Já perdi o medo de morrer', Pjhcre*, 43 anos

Akroá Gamella, Maranhão

Tiros, veículos que arrancam em alta velocidade, ameaças. Na casa onde Pjhcre*, 43 anos, vive com os filhos, todos os dias são de violência. “Retomada é área de risco. E aqui é ameaça de dia, de tarde e de noite”, ela descreve. No contexto indígena, “retomada” é o retorno ao território de seus ancestrais.  

Um portão frágil separa sua casa da BR 135, rodovia federal que liga São Luís (MA) a Belo Horizonte (MG). “Meu rosto está na beira da estrada. Já perdi o medo de morrer.” Líder e mãe solo, aceitou falar sob pseudônimo. Mora em uma área de retomada dos indígenas Akroá Gamella, no interior do Maranhão, Estado onde 35 lideranças foram assassinadas na última década. 

Em agosto, em plena pandemia do novo coronavírus, Pjhcre* passou 15 dias escondida no mato na tentativa de esquecer o trauma de ser seguida por um desconhecido, em uma caminhonete, do centro da cidade mais próxima onde vive até a entrada de casa. “Eu tenho medo pelos meus filhos, porque aqui eles não respeitam nem criança.” Na região que compreende o território reivindicado pelos Akroá Gamella, localizada entre os municípios de Viana, Matinha e Penalva, a identidade dos indígenas não é reconhecida, expondo a vida de todos da comunidade.

Depois, ela rompeu o isolamento que os não-indígenas desconhecem para garantir, na Justiça, atendimento de saúde à comunidade – e pegou Covid-19. Isso porque uma diretriz interna da Fundação Nacional do Índio (Funai), do fim de 2019, determina que apenas famílias indígenas em terras demarcadas sejam atendidas por médicos, deixando milhares de crianças, adultos e idosos, como os Akroá Gamella, sem assistência. O Ministério da Saúde informou, em nota, que “cabe ao Governo Federal ofertar assistência de saúde no âmbito da Atenção Primária aos indígenas aldeados em terras demarcadas, conforme previsto na legislação.”

“Aqui é luta para tudo. As ameaças nunca pararam desde o massacre”, diz ela sobre o ataque que vitimou 22 integrantes dos Akroá Gamella em 3 de abril de 2017, quando uma multidão de mais de 200 pessoas encurralou e atacou indígenas com armas brancas e de fogo – dois perderam a mobilidade das mãos. À época, o caso alcançou o Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas e toda a comunidade foi incluída no Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos do Estado. 

Três anos depois, os indígenas que perderam os movimentos das mãos seguem sem benefício previdenciário porque a Funai se negou a encaminhar um documento reconhecendo a identidade dos Akroá Gamella. A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário, garante o direito à autodeclaração. 

Funai contra o índio

Em outra ação, a Funai descumpriu a decisão do Ministério Público Federal de concluir os estudos do processo de demarcação do território Akroá Gamella.  “Quando você tem uma portaria dizendo pela demarcação e passa todo esse tempo e não se regulariza, você fortalece a voz de quem diz que eles não são indígenas e incita a violência contra eles”, afirma Rosimeire Diniz, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

O território de 14 mil hectares reivindicado pelos Akroá Gamella é alvo de pelo menos sete ações possessórias ou pedidos de reintegração de posse movidos pelos que se dizem proprietários na Justiça Federal. Alguns são ligados a atores políticos que tiveram participação no dia do massacre, e há até um caso envolvendo o Judiciário maranhense. “O território é principal fator de conflito porque os que se colocam como proprietários leem retomada como processo de invasão de terras particulares. Por isso a delimitação da área pela Funai é extremamente importante”, afirma o defensor público Yuri  Costa. 

“Eu sei a dor que é ser xingada, de ter medo de morrer por bala ou atropelada – porque já tentaram isso também -, de ver meus filhos serem destratados na escola para garantir um direito que é nosso. A solução para eles (agressores) é que a gente saísse daqui e abandonasse toda a nossa história e identidade. Mas a gente não vai deixar isso acontecer”, ele diz.

'Pseudoindígenas'

Quando um território indígena é demarcado no Brasil, toda a cadeia dominial (títulos de propriedade) é cancelada e não há ressarcimento pela terra, apenas por benfeitorias, como imóveis e plantações. Por isso, a demarcação não interessa muitos. 

Um deles é Evilasio Jonas Gomes Costa, que pode receber mais de R$ 1 milhão pelo terreno de 1.103 hectares conhecido como “Terra dos Índios” (Viana), que incide no território dos Akroá Gamella. 

O terreno está em processo de desapropriação avançada para reforma agrária pelo Incra. O Incra ofereceu R$ 241.572,62 pela terra. Evilasio recorreu e pediu uma “indenização justa”, como informa um dos documentos. Um novo perito avaliou a área e o valor saltou para R$ 1,3 milhão. 

Evilasio é irmão de Laércio Costa, que foi diretor estadual do PTN (atual Podemos) e secretário adjunto de Inteligência da Secretaria de Segurança Pública do Estado na gestão do ex-agente da PF Aluísio Guimarães Mendes Filho. No dia do massacre, Mendes, atual deputado federal (PSC) e vice-líder de Bolsonaro na Câmara dos Deputados, discursava contra os “pseudoindígenas” para centenas de proprietários rurais e políticos na “Manifestação pela Paz”, que foi o estopim do linchamento.

A reportagem, diversas vezes, tentou contatar os advogados de Evilásio no Rio de Janeiro, por telefone e e-mail, sem sucesso, e o partido pelo qual ele saiu candidato nas eleições. O Incra não retornou pedido de entrevista até o fechamento desta edição.

A exemplo da Funai no Maranhão, a Polícia Federal, responsável pela apuração do massacre de 2017, questionou a identidade dos Akroá Gamella em documentos oficiais produzidos pelos investigadores. 

“No dia em que quase mataram meu filho, a PF chegou aqui chamando a gente de invasor, dos que se dizem índios. Foi assim que a investigação para achar os culpados começou”, conta Pjhcre*. 

 Um dos documentos do inquérito ao qual a Repórter Brasil teve acesso diz: “Do contato visual com tal grupo de pessoas, não se observou predominância significativa de traços comuns aos indígenas, mas sim uma variedade de traços raciais comumente encontrados no Maranhão”. A Defensoria Pública da União e entidades da sociedade civil entraram com um habeas corpus exigindo que os trechos preconceituosos fossem retirados do inquérito. Um ano depois, o pedido, que nem foi julgado, gerou uma reação interna na PF.  

O despacho de 16 de junho de 2020 do delegado Rodrigo Santos Correa, que assumiu o caso, diz que a autodeclaração não é atribuição da Polícia Federal. Mas os fragmentos preconceituosos produzidos por equipes da PF – o que não inclui entrevistas – seguem no inquérito. Na primeira versão dos fatos, segundo trecho do documento assinado por Correa, trata-se de “um conflito desencadeado pela tentativa de ocupação de dois imóveis localizados na área que alegadamente integra o território do Povo Gamela”. Procurada para comentar o caso, a Polícia Federal não retornou os pedidos da reportagem.

“Para nós está muito claro. O inquérito da PF caminha para incriminar os indígenas sem apurar a responsabilidade dos não-indígenas que participaram do massacre em 2017”, afirma o advogado Rafael Silva, da Comissão Pastoral da Terra, que acompanha o caso desde o início. 

Sem identidade reconhecida nem território demarcado, os Akroá Gamella assistem como a floresta que incide no território some bruscamente. “A gente vê pastos abandonados, cabeceiras de rio sem mata. A nossa sensação é que tudo está acabando”, descreve a líder da comunidade.

Os dados do MapBiomas mostram que não se trata só de uma percepção. Em pouco mais de duas décadas, a área de floresta natural da cidade de Viana perdeu 22.324 hectares, enquanto a agropecuária ganhou 35.813 hectares. O mesmo ocorreu nas cidades vizinhas, Matinha e Penalva.  “Essa luta não é só da nossa comunidade. É de todos nós”, diz Pjhcre*. “Eu espero que o Brasil acorde logo para isso.”

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‘Querem nos matar. Só não nos encontraram ainda.’
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