'Eles combinam de nos matar. E a gente, de não morrer', Milena Kokama, 62 anos

Kokama, Amazonas

Passava do meio-dia quanto o motorista acelerou ao atravessar ruas próximas ao Aeroporto Internacional de Manaus Eduardo Gomes. O ziguezague somado às ultrapassagens em alta velocidade assustaram a passageira de 62 anos no banco da frente. Mas não havia jeito. Ou ele acelerava, ou ela morria naquela quarta-feira quente de 29 de julho de 2020. Pelo retrovisor, viu a emboscada: em outro veículo, homens armados a perseguiam.

A penúltima vez em que haviam tentado matar Milena Kokama – mãe, avó, liderança indígena no Amazonas e vice-presidente da Federação Indígena do Povo Kokama do Brasil, Peru e Colômbia – foi em fevereiro, dentro de um prédio do governo brasileiro. A segurança no auditório do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, referência mundial na área e ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, tinha sido reforçada para receber um seminário sobre mineração em terras indígenas – com indígenas, pesquisadores, procuradores e empresários do garimpo na plateia.

À época, os Kokama, diz Milena, já sentiam o aumento da pressão do garimpo no território, algo que hoje os dados comprovam: 2020 será o ano com mais áreas requisitadas para essa atividade na última década, segundo registros da Agência Nacional de Mineração examinados pela empresa de análise de dados Novelo a pedido da Repórter Brasil

“Sabe por que a mineração é tão boa? Porque quem come peixe envenenado é meu povo”, ela disse, durante o encontro. Assim que terminou, um amigo apontou para um grupo de mais de 12 pessoas no auditório, que reconheceu como criminosos, e lhe disse: “Eles estão aqui. Você precisa fugir”. Com a ajuda de parentes, Milena despistou os algozes e se escondeu. “Eles combinam de nos matar. E a gente combina de não morrer.”

“Eu não sei onde meu corpo não sente dor por tanta ameaça, porque minha alma sangra. Ela grita e, quanto mais grita, menos alguém ouve a gente”, diz ela. Há dois anos, a líder é perseguida por defender a identidade Kokama – apagada e silenciada desde a época dos missionários, quando eram proibidos de falar e ensinar a própria língua – e o direito à demarcação, uma vez que parte do território Kokama não passou por esse processo. 

Ter a identidade questionada é realidade no Alto Solimões, terra dos ancestrais de 14 mil Kokamas. Lá, são chamados de “caboclos” e “estrangeiros”, porque  habitam a região que o branco entende como a tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru. E também porque, durante seis décadas, os Kokama precisaram esconder suas raízes em temor por suas próprias vidas. É nos anos 90, segundo afirma Altaci Correa Rubim Tataiya Kokama, linguista e professora da Universidade de Brasília, que os Kokama retomam a identidade e o território, cerca de 16% da região da faixa de fronteira, correspondente a 2% do Amazonas.  

Milena é do município de Santo Antonio do Içá, uma das nove cidades que compõem o Alto Solimões, de uma comunidade que enfrenta um longo processo de demarcação. Dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) mostram que, no último ano, em nenhuma das 189 terras indígenas essa espera teve andamento. “A violência e o conflito crescem por conta da demora. Quanto mais tempo se leva para demarcar e qualificar, mais pessoas podem se sentir proprietárias daquela região”, afirma a procuradora Aline Morais. Ela diz que uma das principais demandas do Ministério Público Federal é destravar os principais problemas relacionados à demarcação.

Sem demarcação da terra, violência aumenta

No Amazonas, mais da metade dos conflitos aconteceu dentro de terras indígenas em algum estágio desse processo. “A violência contra o nosso povo aumentou no atual governo”, diz Milena. 

Sem terras demarcadas, a pressão de invasores – entre eles, madeireiros, garimpeiros e pescadores ilegais – sobre as famílias indígenas aumenta. A insegurança jurídica e de reconhecimento territorial por parte do governo está diretamente ligada ao aumento da violência contra as lideranças e das invasões nesses espaços, observa Pedro Rapozo, coordenador do Núcleo de Estudos Socioambientais da Amazônia. “Alguns territórios não-demarcados estão há mais de 20 horas de deslocamento, e o maior impacto é nessas comunidades.”

Dados do Mapbiomas, plataforma online que mapeia as transformações territoriais brasileiras, ilustram o avanço do desmatamento na região. Desde 2018, quando o sistema de alertas dessa atividade começou a operar, foram emitidos 496 avisos de 1093 hectares desmatados. A cidade de Milena é a terceira que mais perdeu floresta. “Não falta monitoramento, falta ação e fiscalização”, afirma Tasso Azevedo, coordenador da plataforma e ex-diretor-geral do Serviço Florestal Brasileiro.

Pedido de socorro por Whatsapp

Da última vez em que caciques Kokama acionaram Milena em busca de socorro, um grupo havia invadido um dos cemitérios da comunidade no Alto Solimões. No papel de conquistadores, os invasores colocaram uma placa, como se o território tivesse um novo dono. Depois, abriram as covas em busca de bens materiais, já que, na tradição Kokama, os mortos são enterrados com os objetos dos quais gostava e usava em vida, como cerâmicas e peças sagradas. “Eles estão lá quebrando, mexendo e roubando as urnas do meu povo. E eu vou gritar para quem?”

À líder também chegaram fotos de uma nova “área particular”, em cartaz pregado dentro do território Kokama, cujo proprietário seria Luis Gamileira. Registrado no CAR (Cadastro de Imóveis Rurais), o terreno estaria sob responsabilidade do engenheiro florestal José Uanderson Souza dos Santos, do Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e Florestal Sustentável do Estado do Amazonas (Idam). A denúncia dos indígenas dá conta de que Santos utilizava o GPS do Idam para solicitar o cadastro indevidamente, uma vez que ele não tinha sido designado para esse trabalho nem possuía visitas técnicas agendadas. Santos ainda teve uma canoa com animais silvestres abatidos ilegalmente interceptada pelos indígenas, sem nenhum apoio do Estado. Procurado, o Idam não retornou. Santos afirmou que não estava a trabalho quando a “embarcação foi criminosamente empurrada do porto por um grupo de pessoas que cometem uma série de ilegalidades na região”, e que o caso está sendo investigado.

A dificuldade em reconhecer criminosos e mandantes impede que investigações sejam instauradas, mantendo o ciclo de violência intocável, resume a antropóloga Katiane Silva. “O Brasil precisa entender que na floresta há emboscada e embates de forças desiguais, que os povos indígenas que protegem a floresta são caçados e encurralados em uma terra sem lei.” Hoje coordenadora da pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará, ela acompanha a luta dos Kokama por identidade e território há mais de uma década.

A última vez que Milena falou em público foi em junho, quando sua voz alcançou cerca de meio milhão de brasileiros, que assistiam ao programa “Conversa com Bial”, talk show noturno sob comando do jornalista Pedro Bial, na TV Globo. Ao apresentador, a líder escancarou como a má gestão na saúde indígena, em plena pandemia do novo coronavírus, fez cestas básicas com alimentos vencidos chegarem às comunidades em situação de fome. 

“Quando a gente não está sendo assassinado, está morrendo por Covid 19”, disse, entre longas pausas e pranto. Mais de 37 mil indígenas foram contaminados pelo vírus. No ar, ela não conseguiu contar que está exilada dentro do próprio país porque o Brasil não é capaz de garantir a segurança dela e dos seus. “É como se a gente não tivesse o direito de viver. Como se viver fosse um direito absurdo.”

Sem direito à identidade

‘Já perdi o medo de morrer’, Pjhcre*, 43 anos
Akroá Gamella, Maranhão