‘Querem nos matar. Só não nos encontraram ainda’, Jaqueline Gonçalves, 30 anos
Kunangue Aty Guassu, Assembleia das Mulheres Guarani e Kaiowá, MS
Em um programa de rádio de Dourados, no Mato Grosso do Sul, um grupo de quatro apresentadores discorria sobre um novo tipo de saco de lixo ecológico, produzido com um odor capaz de repelir animais de rua que rasgam o plástico em busca de restos de alimentos. “Gato rasga saco, os índios também adoram rasgar saco de lixo”, disse um deles. Um colega completou: “Um cheiro para espantar os índios vai ser difícil, hein?”.
A naturalização da violência que comparou os Guarani e Kaiowá de Mato Grosso do Sul – segunda maior população indígena do país – a animais famintos chegou como denúncia ao WhatsApp de Jaqueline Gonçalves, uma das lideranças indígenas do movimento de mulheres Kunangue Aty Guassu. Enquanto redes de advogados e comunicadores se organizavam em posicionamentos contrários, ouvintes, estarrecidos, acionaram a rádio. “Aqui a gente não tem o direito de ser tratado nem como gente nem como indígena”, ela diz.
Na escalada de violência contra os povos da floresta, Jaqueline representa os indígenas que deixaram as comunidades com a missão de entrar na universidade para defender o direito à terra e à identidade e ecoar as lutas invisibilizadas. Em 2010, 2.723 indígenas se matricularam; em 2017, 49.026. “Os universitários são uma ponte poderosa de compartilhamento de informação, de fazer a denúncia chegar até as autoridades públicas. E essa visibilidade os coloca em risco”, afirma a defensora pública federal Daniele Osório.
A exposição fez de Jaqueline um alvo.
Em 8 de janeiro, ela teve a casa invadida e banhada de combustível. Não levaram nada e não tocaram fogo, mas o recado foi dado. “Eles querem nos matar. Só não nos encontraram ainda.” Jaqueline, que naquele dia estava fora, nunca mais voltou para casa. Vive escondida. “Eu fico no vai-e-vem, sem lugar fixo, sempre mantendo em segurança minha família”, diz.
Em Dourados, os Guarani Kaiowá têm a identidade questionada sistematicamente: ou não são indígenas por usarem roupas e celulares; ou são chamados de invasores paraguaios. “O povo indígena no Mato Grosso do Sul é o que está em situação de pobreza, de medo, de preconceito. Quando a imprensa incita o preconceito e o ódio contra os indígenas, essa mensagem é compartilhada e repercute em uma região que já não os aceita nem os reconhece como indígenas, apesar de os nossos antepassados estarem lá antes”, afirma o antropólogo indígena Tonico Benites, que chama essa violência de cíclica, porque em sua análise ela reverbera na sociedade, reforçando e estimulando novos atos violentos.
Campo de deslocados
Jaqueline é da comunidade Jaguapiru, da Reserva de Dourados, um “campo de deslocados internos”, define Marco Antônio Delfino, procurador do Ministério Público Federal do Mato Grosso do Sul (MPF-MS). O Serviço de Proteção ao Índio (SPI, atual Funai) criou a reserva em 1917 para “depositar indígenas” – como define Delfino – de mais de 40 etnias, retirados de maneira forçada de suas terras para que elas fossem loteadas e vendidas. Para o órgão que antecedeu a Funai, o indígena precisava ser integrado e civilizado.
“Sempre pergunto o que aconteceria se essa remoção acontecesse com famílias inteiras em um prédio de Copacabana, um despejo coletivo feito em caminhão, a quilômetros de onde viviam, para que se tornassem ‘civilizadas’”, afirma o procurador, completando que teríamos memoriais e políticos fazendo discursos todos os anos pelos sobreviventes e pelas vítimas fatais. “Mas são indígenas, e ninguém se importa com eles. O fato é que o Brasil fez remoção forçada, e isso é crime contra a humanidade”, afirma o procurador.
Hoje, mais de 17 mil indígenas vivem em 3.600 hectares, um espaço 30 vezes menor do que o mínimo ideal, segundo especialistas. O processo de demarcação é composto por várias etapas – a identificação e delimitação do território são as primeiras. O estudo do tamanho adequado leva em conta não apenas o local onde a comunidade vive, mas o território necessário para que mantenham seus rituais, cultura e sobrevivência.
“São famílias empilhadas sem escola, atendimento especializado de saúde, segurança ou qualquer direito que obrigatoriamente deveria ser ofertado”, observa Jaqueline. A pandemia, diz o cacique Elizeu Lopes, da assembleia Aty Guassu, agravou as muitas vulnerabilidades da comunidade. “O pesadelo do coronavírus só aumentou nosso pesadelo, porque os ataques estão chegando de todos os lados.”
Sem possibilidade de viver da terra e da caça, e de praticar sua cultura, os Guarani e Kaiowá passaram a fazer “retomadas” em áreas contínuas à reserva onde seus antepassados viviam, muitas em estudo de demarcação. Retomadas, no contexto indígena, são ações para o retorno ao território de seus ancestrais.
“A luta por habitar os territórios dos antepassados é um aspecto fundamental e determinante para entender a tradição Guarani, porque é ali que está a origem da sua humanidade. Eles podem até morrer para salvar a mãe terra”, explica Tonico Benites.
Padrões de atuação e de ataque
“Dourados é um barril de pólvora”, diz a defensora pública federal Daniele Osório. A cidade, ela descreve, foi colonizada à custa da vida de indígenas e expulsões — modo pelo qual grandes proprietários rurais auferiram riquezas.. “É um caso extremamente grave que, obviamente, poderia ser resolvido com um processo de demarcação de terras. Mas essa vontade política não existe.”
No Estado, as atividades agropecuárias respondiam por cerca de 15 milhões de hectares em 1985, e as áreas de floresta, pouco mais de 14 milhões, segundo dados da plataforma Mapbiomas. Em 2018, foram 20 milhões de hectares dedicados ao agronegócio contra 10 milhões de área verde.
No início deste ano, uma comitiva composta por políticos, representantes do Conselho Nacional de Direitos Humanos e integrantes de organizações da sociedade civil teve uma amostra da pressão e da violência que os Guarani e Kaiowá enfrentam em Dourados diariamente.
Em janeiro, enquanto apuravam denúncias envolvendo ações armadas de empresas de segurança privadas – chamadas pelos indígenas de milícias -, prisões arbitrárias e um incêndio criminoso, os integrantes da comitiva foram fotografados e filmados por seguranças privados de fazendeiros. O grupo então solicitou a presença da Força Nacional.
Em março, quando retornaram, ouviram dos indígenas que a Força Nacional não os protegia. Dessa vez, segundo conta o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), seguranças privados de uma empresa que foi denunciada ao MPF bloquearam o acesso da comitiva alegando que não tinham autorização do “proprietário da área”. O terreno não possui cercas e está em fase de estudo para ser demarcado como território indígena pela Funai. O que os seguranças tentaram, em vão, foi evitar que a comitiva encontrasse cápsulas de calibre 22 deflagradas contra a comunidade indígena dias antes. Além do material bélico, a equipe encontrou vítimas baleadas durante a vistoria.
Dos 40 defensores ameaçados no Mato Grosso do Sul, 30 são indígenas. Jaqueline afirma ser perseguida desde 2016. Os ataques “à luz do dia” refletem o grau de violência e “desumanização” que afeta a população indígena, afirma Marco Antônio Delfino. “As expulsões na base da bala mostram claramente que essas pessoas e quem os contratou não consideram aquelas em que estão atirando como iguais.”
A pedido do Ministério Público, a advogada Fernanda Bragato, coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos na Unisinos, analisou o papel das milícias na região. Ela encontrou padrões de atuação e de ataque por parte desses grupos, mais de 10 assassinatos e 20 mil indígenas impactados, entre crianças e idosos. “Hoje, além das milícias, grupos de fazendeiros se organizam com caminhonetes e caveirões [tratores blindados] para expulsar indígenas de terras em processo de demarcação. Chegam atirando e matando gente. É e deve ser tipificado como crime contra a humanidade.”